A cinta de compressão
- Marcelle Vieira Salles
- 20 de jun. de 2024
- 16 min de leitura
Atualizado: 29 de jul. de 2024
Por Marcelle Vieira Salles
A janela entreaberta exibia metade da paisagem alaranjada encerrando o dia no conhecido tom crepuscular. Reflexos da luz minguante de fora reverberava nos arabescos dourados que enfeitavam a cabeceira da cama. Sobre o edredom branco embolado, uma cinta de compressão na cor preta para a qual Marina lançava olhar examinador. Há muito que não se importava em assear seus pertences, tampouco em manter seu ambiente organizado. Era na força da obrigação que se arrastava pelos cômodos da casa, bem como orbitava entre a faculdade, o estágio e, nos finais de semana, pelos compromissos da igreja. Sentia um cansaço jamais experimentado antes. Era com muito sono que empurrava seus dias. Com apenas vinte e um anos, desejava estancar o rio barrento e revolto do seu ainda breve tempo na vida.
O vídeo com uma moça de voz aguda era reproduzido pelo celular. Nele, eram ensinados truques de contorno de maquiagem para afinar o rosto. No espelho da penteadeira, porém, via-se o reflexo de um perfil arredondado por entre manchas de gordura e sujeira que pareciam ter sido pinceladas na superfície, embaçando ainda mais seu olhar carregado de tensão. De quando em quando, sua íris, cor de caramelo, reluzia marejada por detrás de uma umidade densa que resistia. Seu cabelo ondulava por cima dos ombros e das costas e era da cor dos seus olhos. As madeixas tinham sido iluminadas recentemente num dos melhores salões de beleza em Belo Horizonte. Foram setecentos reais gastos em pouco mais de três horas no cabeleireiro e pagava na fatura daquele mês a terceira de quatro parcelas do montante inviável para seu salário mínimo mensal. Em alguns momentos, Marina encarava o espelho para reparar na raiz preta de quase três centímetros que já enegrecia seu visual idealizado. Queria mudar aquela situação. Queria clarear suas raízes. Quanto estaria medindo agora? Seu ventre ficava cada dia mais arredondado, mais macio. De hormônios e células multiplicava. Um bolo atolado em sua faringe, reunia-se a outro bolo de pressão acoplado ao coração que batia forte dentro do seu útero. Vinte e quatro semanas de gestação, segundo a ecografia de dois dias anteriores, era equivalente a mais de vinte centímetros de uma existência indesejada. Aquilo se tornava muito maior e mais incômodo do que a raiz detestável a obscurecer a luminosidade artificial dos seus cabelos.
Quando ia retomar o início do vídeo para finalmente aplicar as dicas de contorno em sua face arredondada, o celular trouxe a imagem de Felipe. Nos últimos tempos, notava que ele ligava na mesma intensidade que mostrava se importar com o relacionamento dos dois. Era sempre evasivo nas respostas e muito incisivo nas perguntas. Seus olhos a escaneavam como se estivessem sempre a medir sua silhueta já modificada. Seus abraços eram padronizados. Isso muito a angustiava, pois a fazia sentir como uma engrenagem que girava mecanizada por sua insistência no relacionamento, e Felipe, era a peça essencial que se desprendia pouco a pouco dela mesma. O celular interrompeu tanto a fala estridente da youtuber quanto os pensamentos abafados de Marina.
“Oi, tá pronta?” em tom distanciado, evidente mesmo pelo uso do viva-voz em seu carro. Marina respondeu embargada pela tristeza que era incapaz de expulsar, seja com lágrimas, seja com o formalizar de palavras. Ele sequer esperou que Marina terminasse seu raciocínio e disparou: “Já sai de casa, chego aí em treze minutos”. O sinal emitido pelo aparelho de que a ligação havia finalizado soou como badalada ensurdecedora nos tímpanos de Marina. Então ela soube logo que deveria se apressar. Aqueles treze minutos eram prenunciados pela racionalidade excessiva do aplicativo de navegação no estimado carro do seu namorado.
Marina nem cogitou retornar ao vídeo. Traçou com desleixo alguns riscos de corretivo marrom nas laterais da face e no osso nasal. Espalhou a tonalidade com os dedos anelares e procurou finalizar a cobertura da maquiagem no mesmo arrojo que reprimia suas emoções. Percebeu um ponto protuberante da espessa camada de rímel em seus cílios e, a fim de eliminá-lo, acabou arrancando dois fios de cabelo que ficaram grudados e manchavam de preto seu polegar e indicador da mão direita. Em desespero limpou os dedos no edredom branco e, em seguida, recordou da peça que intencionou vestir quando estivesse de saída. Já estava no final de outubro, um calor infernal e aquela cinta compressora tornava sua transpiração insuportável. Retirou novamente a bata escura que vestia e com extrema velocidade encaixou a cinta em sua silhueta. Era muito esforço empreendido para segurar a respiração, murchar a barriga e puxar com todas as forças as extremidades da cinta em direção ao centro do abdômen. Toda essa aplicação, porém, não estava sendo suficiente para reunir as barbatanas externas em direção à linha mais larga da regulagem. As pontas dos seus dedos já estavam roxas com a pressão exercida para que os colchetes se encontrassem. De repente, um tremor involuntário vindo do interior do seu ventre bem como o suor nos seus dedos fez deslizar o tecido de uma das hastes da cinta. Marina reiniciou com muita dificuldade e cansaço sua missão e após alguns minutos, obteve êxito. Conseguiu encaixar o primeiro colchete que já estava prestes a descosturar. Foi subindo prendedor por prendedor com obstinação, segurando também o escasso ar que lhe faltava. Ao terminar de cerrar os colchetes, reuniu as hastes da camada externa e ainda com dificuldade, passou o zíper por cima. Não foi capaz de soltar o ar por completo e agora sua fadiga era paralisante. Gotículas de suor inundavam sua testa e seu buço. Audivelmente inspirou todo o ar que seria capaz de apreender e ainda assim, parecia asfixiar-se. A barbatana que emoldurava a parte superior da cinta estava agora pressionando a parte inferior dos seus seios que se avolumaram nas últimas semanas. Não podia retirar a cinta, teria de suportar pelas próximas horas a consequência de uma situação que estava com prazo para findar. Vestiu sua calça legging, a única que ainda lhe servia e calçou o scarpin preto de verniz, que marcava de forma inconveniente seus passos com o barulho do prego desnudo em um dos saltos.
Passou pela sala e despediu do pai que assistia a um jogo de futebol. Mas quem respondeu foi sua mãe da cozinha. Dela escutou um “tchau, vai com Deus” à distância, numa apartada extensão que Marina procurava manter-se dela e de seu pai há pelo menos três meses.
Desceu os quatro lances da escada do prédio em postura ereta e elegante. O ritmo dos seus passos era hesitante, não conseguia mover-se com leveza, respirava em descompasso. Antes de atravessar pelo portão já avistava a expressão impaciente de Felipe dentro do carro. Ficou nauseada com as notas do perfume amadeirado do namorado que beliscaram suas narinas. Tentou recordar o nome da fragrância que agora trazia água amarga à sua boca e com o arrancar do carro, temeu vomitar antes que chegasse à igreja. Procurou por alguma sacola de supermercado na bolsa, mas logo sua atenção foi dirigida à intervenção de Felipe:
— Tá lembrando que amanhã é o procedimento, né?
— Não consigo parar de pensar nisso. Tô com muito medo.
— A culpa é toda sua. Se tivesse decidido antes, logo no início, não ia ter medo agora. Te avisei.
— Se a gente não tivesse transado, não ia ter medo agora. Se arrependimento matasse.
— Ah, vai começar de novo? Você tá chata demais, credo. IN-SU-POR-TÁ-VEL! – ele batia as próprias mãos com força no volante no mesmo ritmo que marcava as sílabas.
Marina segurava com o dedo indicador uma lágrima que insistia romper; evitava assim que a camada exagerada de rímel borrasse sua maquiagem feita às pressas. Seu olhar foi atraído para o braço direito e musculoso de Felipe golpeando a marcha, o qual exibia nova tatuagem, completamente envolvida com plástico filme.
— Não sabia que ia fazer outra tatuagem. Você não estava apertado de dinheiro?
— Aí, tá vendo? Ow, faço de tudo, de TU-DO pra não brigar com você, cara! Mas você tá sempre provocando isso. Você tá sempre tornando nosso relacionamento um inferno, um inferno! Ow, de verdade, de verdade mesmo que eu queria que desse certo, mas não dá. Não dá. Somos muito diferentes. Você tá sempre revirando as coisas. Fica trazendo polêmica pro que já passou. Você precisa de terapia urgente, sério mesmo. De terapia. Tô falando isso pro seu bem.
Marina queria suspirar, mas era impossível com a pressão exercida pela cinta. Desejava pelo menos exalar ar puro, mas os vidros estavam fechados. Sem pensar, apertou o botão ao lado e à medida que o vidro pendia, abria os lábios e fechava os olhos, como se estivesse bebendo água gelada e cristalina de uma estátua de mármore. O vento cessou num instante brusco, despertando seu olhar para o asfalto que reluzia em tons dourados pelos postes alinhados na via.
— O ar tá ligado, pô. Vou fechar.
O trânsito de domingo não costumava ficar carregado, mas nesse dia, o caminho parecia combinar um grande fluxo de automóveis a importantes eventos que aconteciam na cidade. Muitos retornavam do jogo de futebol e tantos outros atraíam motoristas de aplicativo para buscá-los ao término de uma prova de concurso. O trajeto da sua casa até a igreja não demorava mais que 10 minutos, mas agora o tempo parecia esticar em exagero. Já estavam parados no sinal há alguns minutos e o carro andava centímetros por vez.
— Não quero ficar brigando, só quero resolver a situação. Sei que tá difícil pra você também. Sei disso. Mas quanto mais a situação se prolongar, pior vai ser. Eu tô ileso. Não tem ninguém crescendo dentro de mim. Sou só eu mesmo. Você que tá com um problema do tamanho do mundo. Você é duas pessoas agora. Quer dizer, você são duas pessoas, sei lá. Amanhã você precisa resolver esse trem. Não tem jeito mais. Eu num tô pagando? Num tô arcando com tudo? Não te cobrei nada e nem vou te cobrar, fica tranquila que não vou te cobrar. Só quero ficar livre disso, quer dizer, mais do que eu ficar livre, tô pensando em você ficar livre desse trem. O que é isso na sua cara? Você tá com umas manchas marrons no seu rosto, olha aí no espelho.
Felipe acendeu a lâmpada no teto do carro e Marina desceu o espelho à sua frente. Reparou que havia marcas do corretivo contornando sua testa e as maçãs do seu rosto. Foi espalhando com os dedos os resquícios do que havia arquitetado sem sucesso e quando deu por si, não havia mais chance de segurar o choro. Secou rapidamente com as costas da mão e disse engasgada:
— Tenho medo de morrer. O ultrassom já mostrou que ele tá com vinte e quatro semanas. É menino.
— Mas a culpa é sua se você morrer! Eu avisei, disse que a gente tinha que resolver rápido, mas você ficou enrolando, enrolando. Deu nisso aí. O bom é que o cara disse que é muito difícil dar zebra. E vai ter uma mulher que é enfermeira te acompanhando lá no hotel. Vai ter outras três mulheres lá amanhã. Acho que uma delas está com uns seis meses também. Ele disse que é mó normal pegar grávida de seis meses e não acontecer nada. Pô, mas também, né? – disse rindo -, cinco mil e quatrocentos reais? Tem que dar certo mesmo! Ele tava querendo cobrar seis mil, mas eu negociei pra cinco mil e quatrocentos. Mãe conseguiu pegar emprestado três mil no banco e eu tinha dois e quatrocentos que tava guardando pra viajar. Não sei que desculpa vou inventar pro meu pai. Mãe que depois vai se virar com ele.
— Tô com muita vergonha da sua mãe.
— Não preocupa com minha mãe. Pai não sabendo, tá de boa. Meu pai é que não pode saber. Aliás, hoje ele que vai pregar. Nossa, cara, o que tá acontecendo com esse trânsito hoje?
— Deixei meu pai vendo o jogo do Galo e teve prova da Polícia Civil. A Bárbara ia fazer. Ela me disse semana passada.
— Ow, admiro muito a Bárbara, véi, de verdade. Ela é esforçada demais. Passou na prova da OAB logo depois da formatura e com certeza ela vai passar nessa prova agora. Ela é muito inteligente, tá com o futuro garantido. Você sabe se ela tá namorando o Tiago?
— Não sei se estão namorando. Acho muito pouco provável. Os dois não combinam em nada.
— Ele tem um jeitinho de gay que vou te falar, viu!
— Ele me lembra muito Jesus.
— Nossa, Marina, você parece retardada às vezes. Tiago parece Jesus? Com aquele jeitinho gay consertando toda hora os óculos na cara? Você me faz rir demais!
— Tiago só é mais sensível, mais atencioso. Ele realmente vive o que prega, é leal ao que acredita. Quando olho para ele é como se estivesse olhando para Jesus. – Marina fez uma pausa embargada para puxar o ar e completou -, eu vi o bebê. Tive muita pena. Fico impressionada com seu desdém pelo bebê. É pecado isso que a gente vai fazer. É assassinato.
– Nossa, ow. Você é chata demais. É pecado sim, uai. É claro que é pecado. Mas todos nós somos pecadores. A gente peca só de respirar. Somos seres decaídos, entendeu? Pois todos nós pecamos e deslocados estamos da graça de Deus. Acho que isso tá escrito em Filipenses ou Isaías, um negócio assim. Só porque vamos fazer isso, num deixei de achar que é pecado não, uai.
– A gente faz tanto discurso contra e agora a gente tá aqui. Pagando pra fazer um aborto.
– A gente não! Eu, EU tô pagando. Eu e minha mãe que tá pagando. E a gente discursa contra sim, uai. A gente tem que discursar contra. É um discurso hipotético, sei lá. Como é que fala? É tipo...
– Um posicionamento político...
– Sim, é posicionamento político, isso mesmo que eu ia falar.
– Um posicionamento político e hipócrita.
– Não. Não é hipocrisia, não. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. A gente tem que falar, a gente tem que se posicionar contra esse povo nojento que acha que não é pecado, que é coisa normal. Mas quando o problema chega, nem sempre tem como agir de acordo com o que a gente prega, entendeu? Por exemplo, meu pai mesmo. Sei que você tem muita admiração por ele. Mas você acha que se ele tivesse engravidado minha mãe no seminário, duvido ow, duvido muito que ele não ia pedir pra mãe abortar também. É uma questão de reputação. De reputação, entendeu? Se isso tivesse acontecido com ele e não comigo, certeza que ele faria a mesma coisa. Certeza disso. Certeza. Mãe mesmo falou que se fosse com ela, pra evitar ser expulsa de casa pelo meu avô, teria feito a mesma coisa. É minha reputação que tá em jogo. É algo muito maior que nossa pena ou vontade de não abortar. A gente tem que ser racional às vezes. Dói sim. Eu sei que dói. Machuca. Mas a vida é assim. É o nome de Deus também que tá em jogo, você já pensou nisso? No escândalo que vai ser lá na igreja? Na decepção do meu pai? E pra mim também, uai, você já pensou em mim? Você só pensa em você e nisso daí. Eu faço parte do louvor, véi. O nome de Deus vai ser manchado, a gente tem que ter zelo pelo nome de Deus. Mãe mesmo disse isso pra mim essa semana, por isso que ela fez o empréstimo na hora que eu descobri esse cara na internet. Tô falando desse cara aí que vai fazer o procedimento no hotel amanhã.
Marina escutava Felipe falar e olhava para fora enquanto o carro já avançava com mais fluidez pela avenida. Outro sinal amarelo foi ultrapassado por Felipe que enterrou antes o pé no acelerador, mas logo foi bloqueado pelo farol vermelho que despontava no cruzamento seguinte. Marina percebeu o pescoço de Felipe que girava em sua direção e notou novamente seu olhar a escaneando como fazia nos últimos tempos.
— A parte de cima do seu cabelo tá toda preta, você notou? Tem que ir de novo naquele salão que minha mãe te levou. Ela deve ir lá por esses dias, combina com ela. Você também tá bem mais roliça, hein? Nu! Você tá usando a cinta que mãe mandou te entregar? Tá? Nu! Nem parece. Detesto mulher gorda, ow. Você tem que se cuidar, véi. De verdade, de verdade mesmo. Você tá acabando com você mesma por pura teimosia.
— Já não te disse que vou amanhã?
— Não tô falando só de amanhã, Marina. Tô falando do que era quando começamos a namorar e do que virou agora. Tá estranha demais. Demais. – ao trocar a marcha, Felipe foi mudando a entonação da voz – é pro seu bem que tô falando isso. Você tá apagada. Sei lá, desleixada, não sei explicar. Olha pra sua unha? Nem esmalte você passa mais. Mãe tá toda semana cuidando da unha dela. É uma unha de gel, eu vi a moça lá em casa fazendo nela. Reparei nesses dias também a unha da Bárbara, igual a da minha mãe. As outras meninas da igreja também. Todas elas com aquelas unhas grandes e com esmalte brilhante. Estão cuidando delas. Estão mais que certas. Todas muito arrumadas, com aparência impecável. Todas. Mas você chega aqui com a cara toda marrom agora, parecendo uma palhaça. Tá muito mudada. Muito mudada.
Para Marina, as palavras de Felipe eram mais nauseantes que a fragrância enjoativa que ele exalava. Nesse instante, um líquido azedo inundou a faringe de Marina e ela engoliu aquele fluído que desceu ardendo em seu esôfago, juntamente com o bolo daquelas palavras que tinha acabado de escutar. Felipe brecou o carro com a costumeira rispidez assim que visualizou a primeira vaga próxima à portaria da igreja.
Ao fechar a porta do carro, Marina jogou seu braço para trás com tal incorreção que fez seu pescoço e sua nuca ranger de dor. Levou sua mão à parte de trás da cabeça torcendo os lábios e ouviu uma voz suave e firme ao seu lado perguntar:
— Marina, está tudo bem?
Sua visão fragmentava-se em inúmeros pontos pretos que misturavam à luminosidade do letreiro anunciando o nome da comunidade cristã para a qual se dirigiam. Marina tentou inalar um pouco de ar, mas naquele instante estava mais confinada em si mesma do que nunca. Procurou olhar para o lado, mas na impossibilidade, voltou totalmente o tronco à esquerda e enxergou o contorno da cabeça de Tiago e uma luz que a rodeava, como uma aureola a iluminar sua visão. Sentiu a mão dele sustentar seu cotovelo e parte do antebraço, enquanto escutava a voz alegre de Felipe se distanciar pelas escadarias do hall da igreja. No começo do namoro ele costumava a esperar para entrarem juntos na igreja, mas essa prática há muito que havia sido alterada. Quando não entrava sozinha para o templo, estava sempre acompanhada da senhora que ajudava na recepção dos membros ou com alguns jovens da sua turma. Nessa ocasião, Tiago estava ao seu lado para lhe fazer companhia e ao avistarem o salão do templo à frente, observaram que os primeiros lugares já estavam ocupados. Marina então aceitou o convite de sentar-se ao lado de Tiago três fileiras atrás dos integrantes da banda do louvor.
Marina acompanhou a certa distância Felipe retirar o violão da case prateada, encostá-lo num suporte vertical e posicionar o pedestal com o microfone à altura do seu queixo. Em seguida, ele desceu os degraus do púlpito com imperturbável tranquilidade. Reparou que Felipe movia para o lado oposto do templo, em direção a uma das primeiras fileiras, onde Bárbara estava assentada. Notou que Bárbara levantou-se para abraçá-lo e escutou, no balbucio discreto do recinto, um diálogo repicado entre eles. “então você fez a tatuagem!”, “ficou show demais!”, “onde você fez?”, “um trabalho lindo, valeu a pena cada centavo!”.
O assento apertado onde Marina estava tornou-se ainda mais espremido. Suas mãos começaram a transpirar um suor frio e tentou reposicionar-se na cadeira, mas não encontrava lugar, nem fora, nem dentro de si mesma. Nesse momento, a vontade de chorar era incontrolável e não sabia como reagir a tamanhos ultrajes e frustrações. Sentia-se pior que um animal abandonado, absorvendo sua total nulidade para Felipe.
Tiago estava com os dedos cruzados sobre a bíblia que denotava desgastes pelas rugas da capa e pelas letras douradas descascadas. Seus dedos eram finos, caracterizando a anatomia de um excelente pianista que era. Estava sempre escalado para tocar nos cultos da manhã, servindo aos velhos, como Felipe gostava de criticá-lo. Mas a noite ia ao culto como ouvinte e, depois, unia-se à turma numa lanchonete, aproximando-se dela, conversando a respeito de filmes e livros. Gostava de estar perto e de conversar com ele e percebia que o sentimento era recíproco. A presença de Tiago, apesar de ser iminente para Marina, não estancava sua emoção que deixava sair em silenciosa cadência naquele momento. Contudo, ela permaneceu com a cabeça ligeiramente reclinada, o quanto mais que conseguia, devido ao bloqueio imposto pela cinta de compressão aos movimentos do seu tronco, que também sofria com a recente distensão muscular. O choro foi saindo de fininho e Marina limpava o rosto em discretos gestos. Estremeceu assustada ao sentir uma mão repousar sobre sua cabeça. Tiago passou a orar em voz baixa para que Cristo visitasse Marina. Para que Cristo a curasse de toda dor. Para que Cristo libertasse sua irmã de toda angústia e tristeza. Marina sentiu em igual intensidade, quando a mão esquerda de Tiago afastou de sua cabeça. Sentiu falta daquela mão que intercedia e que compadecia dela. Quis buscar novamente aquela mão que a protegia e coloca-la de novo sobre sua cabeça. Ao levantar devagar a fronte, observou que todos, inclusive Tiago já estavam em pé para o tempo de louvor e adoração. Pensou em levantar-se também, mas sentia-se incapaz de executar qualquer movimento. Estava consciente de que os instrumentos tocavam, que Felipe e os demais músicos cantavam, mas não discernia qual hino era entoado. Continuou estática por um bom tempo encarando a silhueta de Felipe, sua imagem distanciada no altar por entre braços e quadris das pessoas que postavam nas fileiras à sua frente.
A boca de Marina estava novamente salivando amargamente e os pontos pretos voltavam a chamuscar sua visão. Sentia um suor frio percorrer sua nuca e testa. Em seguida, permitiu de novo que seu pescoço pendesse ligeiramente para frente. Somente instantes depois conseguiu levantar os olhos e ver que o pastor já estava a postos para declamar o texto bíblico. Escutou então o pastor dizer:
Abram todos no Evangelho de Mateus, capítulo onze, versículos vinte e oito a trinta. O texto diz: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomais sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrarei descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve”.
Em seguida, orou:
“Pai Santíssimo, Deus de paz e perdão. Rogamos que nos visite nesta hora e fale ao nosso coração por meio de suas palavras que sempre trazem alívio e leveza para nossos fardos e pecados. Sim, fale conosco nesta noite a começar por mim, ó Deus. Caminhamos em Tua direção, Jesus, e pedimos por Tua Misericórdia. Ajude-nos a carregar nossos fardos. Precisamos de ti, Senhor. Amém.”
O ressonar de Marina chamou a atenção de Tiago. Ao reparar na amiga, notou que seus olhos estavam cerrados e com gotículas de suor espalhadas por seu rosto. Chamou seu nome por algumas vezes e, sem obter resposta, olhou assustado para os lados, como se temesse que outra pessoa também estivesse observando a soneca dela em meio ao culto. Aproximou-se então do ouvido dela e aspirou, num ato involuntário, a suave fragrância de lavanda usada por Marina. Tiago então perguntou com brandura:
— Marina, está tudo bem?
Marina despertou na maciez calma da voz de Tiago e suspirando disse para ele:
— A cinta. A cinta tá me apertando. Estou sem ar.
— Cinta? Como assim?
— A cinta. Solta a minha cinta. – ao dizer isso, Marina despejou seu corpo para o lado e seus olhos agora estavam entreabertos, revirados.
Tiago já não conseguiu mais disfarçar seu desespero e gritou por ajuda. Pouco tempo depois estavam várias pessoas aglomeradas ao redor do banco de Marina e o pastor já descia do púlpito para ajudar a ovelha que passava mal. A senhora que prestava serviço no templo agachou à frente do assento de Marina e conversava com Tiago que lhe transmitia as últimas palavras proferidas pela amiga antes de desmaiar, “ela disse, a cinta, solta, solta minha cinta. Foi isso que ela disse para mim”. Então a senhora suspendeu a bata de Marina e começou a desprendê-la, camada por camada, colchete por colchete. À medida que soltava os prendedores, Tiago observava as marcas arroxeadas formadas na pele clara da barriga da amiga. Ao abrir por completo a cinta de compressão, a senhora olhou assustada para Tiago e para as pessoas ao redor. Num gesto súbito, Marina abriu a boca e suspirou com alívio enquanto arregalava seus olhos.
Ao deparar-se consigo, revelada, abaixou a bata e disse sem pensar:
— É menino e o nome dele vai ser Tiago, porque Tiago me faz lembrar Jesus.
Comments