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Recordo, logo escrevo.

Carrego em minha genética o gosto por recordações. Meu pai, já falecido, tinha predileção por fotografias. Ao longo dos anos, ele guardou dezenas de fotos em preto e branco, a maior parte de sua juventude, em uma caixa de madeira para a qual sempre me debruço para imaginar histórias que ele não teve tempo de me contar. Dele também restaram anotações numa caligrafia impecável e uma caderneta com enorme lista de filmes que havia assistido no cinema. Por isso, seleciono sempre na mente uma película envelhecida em sépia. No recôndito dos meus afetos, ali está meu pai, assentado de perfil na cadeira de rodas ao lado da mesa de jantar. Ele inclina a fronte levemente para que eu beije sua testa e me despeça antes de ir à escola. Rebobino e assisto essa preciosa cena da minha infância, vezes sem fim.

Já as recordações de minha mãe são variadas, abrangendo tanto fotos e peças do enxoval de seu casamento, quanto alfinete decorado que prendia as fraldas de pano em meu irmão quando recém-nascido. Ainda folheio revistas da década de 1970 com fotos dos espetáculos de Elvis Presley em Las Vegas que ela muito se orgulha de ainda possuir. Outro dia ela anunciou radiante a descoberta de uma fita cassete com a gravação de música que compus e cantei com minha melhor amiga durante a adolescência. Agindo assim, como uma boa memorialista, minha mãe esmiúça lembranças e se dedica a trazer eventos longínquos para os abraçarmos no presente. Mal sabe ela que fico degustando algumas ideias que ela serve com tantas miudezas aos meus arquivos. Espero que ela ainda possa ler páginas das tantas narrativas que inspiram e enriquecem minha escrita.

Conservo também algumas relíquias, como um porta joia onde estão guardados pedaços soltos e delicados de brinquedos da minha primeira infância. Além desses resquícios, tenho ainda minha pasta com coleção de papéis de cartas e tantas páginas de escritos amarelados, sejam em agendas, diários ou cadernos de escola que sempre me recuso a descartar. Entre choros e risadas, meu coração se acalenta do passado que muitas vezes gostaria de fazer renascer, especialmente ao que remete à minha infância; uma fase de algumas tristezas, mas de infindáveis reminiscências que formaram meu caráter e minhas aptidões.

Há pouco tempo, numa dessas expedições, encontrei um conto que escrevi como atividade de prática de redação durante as aulas de Português em 1994. Tinha apenas 10 anos e escrevi um conto muito simples. A história era sobre “um cachorrinho falante” que eu havia encontrado e batizado de Bidu. Guardo com muito carinho esta que é uma das minhas primeiras criações literárias. Dentro da narrativa, enxergo algumas experiências que vivi naquela época, como a ida da personagem com o cachorrinho falante ao cinema para assistir à animação O Rei Leão. É curioso pensar como as digitais das experiências, sejam por mim vividas ou relatadas por outras pessoas ao meu redor, vão se apresentar de alguma maneira na poesia e na ficção que escrevo.

Na obra Misery de Stephen King há um trecho em que o narrador, explora o que é ser escritor. Ele diz: “escritores se lembram de tudo, especialmente o que dói. Tire toda a roupa de um escritor, aponte às cicatrizes e ele vai contar a história de todas, até das menores”. E ainda, arremata: “a arte é a persistência da memória”. Pois é exatamente isso que penso em relação à escrita. E porque vivo a recordar, grita alto em mim essa necessidade de eternizar, na literatura, as inúmeras reminiscências que resistem e desejam viver de alguma forma nas memórias de outras pessoas também.

Marcelle Vieira Salles 

17/01/2024

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