A capacidade humana poderá ser superada pela IA?
- Marcelle Vieira Salles
- 14 de mar.
- 3 min de leitura
Em recente entrevista ao videocast do Jornal Valor Econômico, o executivo-chefe da agência de publicidade Betc Havas, Erh Ray, afirmou que o repertório criativo é o que nos diferencia da inteligência artificial (IA) e nos possibilita descolar das habilidades e previsibilidades já apropriadas por esse tipo de tecnologia. Sabemos que desde a emergência das IAs generativas (aquelas programadas para gerar ideias, imagens, vídeos, músicas, vozes, conversas e textos), têm surgido questionamentos por parte de artistas, escritores e organizações do conhecimento, em face do sequestro substancial que essas tecnologias fazem dos direitos autorais. E ainda que a inteligência artificial seja melhor regulada, é inevitável que se expanda e produza obsolescências nos diversos setores da economia. Contudo, algo muito interessante é exposto pela opinião do executivo Erh Ray, no que diz respeito ao potencial da criatividade humana em driblar seus adversários tecnológicos e conduzir o jogo com mais artimanhas retiradas do nosso repositório criativo. Confesso que tal pensamento me levou a memórias do passado onde a criatividade corria mais naturalmente.
Em 1998, época em que a internet era discada e recurso raríssimo nos lares brasileiros, uma das principais distrações dos adolescentes era a televisão. Tenho muitas lembranças da minha rotina que consistia em chegar da escola, almoçar, ler páginas de algum dos livros da Coleção Vaga-Lume e passar o restante da tarde assistindo aos videoclipes da MTV ao lado do meu irmão. Adorava ver a empolgação dele quando calhava de algum clipe que aguardávamos ser anunciado e no detalhe do seu polegar pressionando com força a tecla REC do controle remoto, em perfeita sincronia com o início da música. Penso que a adrenalina que envolvia aquelas sequências diárias entre esperas e realizações acabam tornando insípidos nossos dias de impaciência, áudios acelerados e plataformas de streaming, que nos obrigam a engolir velozmente muito entretenimento sem nos dar a devida chance de digerir e sentir a cadência das pausas. É fato também que a monotonia dos dias analógicos do passado nos proporcionava circunstâncias para inventar e sermos mais manuais em nossas ideias. Às vezes sinto saudade da engenhosidade que o avanço da tecnologia fez sumir às nossas vistas. E foi naquele tempo nostálgico, que meu irmão concebeu de enviar carta para que um dos nossos vídeos preferidos fosse transmitido na MTV. Só sei que foi tão original o que ele criou que a apresentadora do programa Radiola, Chris Niklas, tornou a obra do meu irmão conhecida em cadeia nacional. A carta dele era formada por uma fita VHS inutilizada, onde ele substituiu a bobina preta do filme por uma tira gigantesca emendada de papel ofício e perfeitamente enrolada no mesmo espaço da bobina anterior. Nessa tira de papel, ele escreveu a mensagem com o pedido para transmitirem o videoclipe. E por meio do pino instalado na caixa de plástico do VHS, a apresentadora conseguia girar a engrenagem e ler ao mesmo tempo o que estava escrito na tira de papel. Assim, além de alcançar o objetivo de gravar o tão desejado clipe, meu irmão superou as expectativas da produção do programa e ganhou prêmios que ainda guarda de recordação.
Bem, quis contar essa história para ilustrar o fato de que nosso repertório de experiências pode ser o caminho para vencer o temor relativo à emergência e transformação acelerada das IAs, especialmente quanto ao inevitável desaparecimento de muitos negócios e funções existentes. Afinal, para que servem hoje as fitas VHS a não ser para constar em exposições museológicas ou resgatar arquivos em película da nossa memória? Mas ainda assim, é importante reforçar o retorno ao nosso repertório e refletir sobre as carências da natureza humana: educação, saúde, segurança, afeto, atenção, relações saudáveis, generosidade, descanso e arte em suas múltiplas formas. Indubitavelmente, todas essas demandas essenciais jamais serão plenamente satisfeitas pelas tecnologias. Mesmo que encontremos IAs imitando conexões neurais, creio que essas tecnologias não poderão superar o sentimento genuíno que a esperança carrega ao escrever cartas em fitas VHS para lerem no futuro.
Marcelle Vieira Salles
06/12/2024
p.s.: achei que os gifs abaixo combinariam muito com a reflexão acima :)
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